Inverno da transformação à renovação
 



Cronicas

Inverno da transformação à renovação

Maria Rosário Orquiza


Não sei o porquê, mas o inverno me faz lembrar da interiorização física e espiritual. Talvez pelos estudos da Semiótica, dos signos e das representações Popularmente, as estações podem representar as fases da vida: primavera, a fase de florescer, crescer. Dos aromas e cores da jovialidade. O verão, a energia, explosão e capacidade vital de criar, gerar e procriar. O outono, a maturidade e a plenitude do equilíbrio, da acomodação, do início do recolhimento. Da conclusão com sensatez, da humildade e da sabedoria. E o inverno, a reflexão e a interiorização. O isolamento e a plenitude do silêncio e do balanço da vida. Não sei se estão corretas minhas significações, embora sejam sempre de livre arbítrio.

A Meditação é inverno. O Universo é inverno. A solidão é inverno. Tudo isso tem em comum a interiorização sincronizada com a expansão temporal e espacial. A preparação para a fase do desconhecido, da certeza da finitude da vida e da esperança da renovação. Independente da crença e da cultura. Independente do tempo e do espaço.

Interiorização é como ficar encapsulado novamente. Semelhante ao momento em que estávamos no ventre materno, aguardando o nascimento. Agora, na fase invernal, retornar à placenta espiritual, conectada ao mundo e ao infinito. Ao mesmo tempo, conexão com o submundo e com o espaço sideral. Em estado de meditação, de reflexão. Pensar e lembrar dos momentos do passado, ver a superfície do presente e criar (ou não) perspectivas de um futuro muito próximo. Ou não pensar em nada? Seria rumo ao Nirvana?

Inverno lembra a interiorização dos casulos familiares, que se aproximam e se aquecem. Calor dos lares, das lareiras. Dos arquétipos. Do fogo secular das cavernas. Dos rituais e das conversas em volta à fogueira. Som dos estalos e faíscas de partículas de luzes esvoaçantes. Fogo, calor e luz. Lá fora, o frio, o vento cortante, que fazem doer a pele facial, as juntas dos ossos, as extremidades dos pés e das mãos. Nos casulos, o silêncio e a reflexão. O saber ouvir, entre os espaços do silêncio, as palavras importantes ou não. Mas que trazem luz e alegria.

A fase invernal da vida parece ser um sonho acordado. Fusão do sonho e da realidade. Da imaginação e da veracidade. Talvez como estar acordado com febre. O desdobramento da visão em dois planos: do real e outra visão paralela (produto da alucinação ou de outra dimensão?).

Quando vejo minha mãe de 96 anos, encolhida no sofá, ou com o andar lento, postura em curva, enxergo permanente reverência oriental ou religiosa. Postura de humildade. Pés arrastados e cadência em câmera lenta. Em toda cena, visualizo a fase invernal da vida. Reparo mais agora, pois será minha próxima estação do ano. Creio que eu esteja no início do outono, embora tenha pensamentos e ações primaveris e decisões invernais. Dualidades do ser. Só reparamos e nos preocupamos mais com a velhice, quando começamos a sentir que estamos chegando mais próximos dela. Talvez até já tenha chegado para muitos, embora não queiramos reconhecer. O mito da eterna juventude promove os salões de beleza, os cirurgiões plásticos, a indústria cosmética. Para quem pode e quer sempre estar na primavera, mesmo que seja como uma flor artificial. O mundo é feito de aparências para quem anda na superficialidade do presente. Ainda sobrevive o mito da caverna de Platão. As sombras projetadas no interior da caverna representavam a falsidade dos sentidos.

Lembro-me da época em que tinha cinco anos de idade e chorei muito, baixinho, por longo tempo, escondida no banheiro de casa. Motivo? A velhice. Origem? Uma situação qualquer de discussão feia entre minha mãe e minha querida e defensora avó materna. Vi lágrimas e tristeza nos olhos de minha avó. Corri ao banheiro e chorei por pena. Pela impotência de não poder ajudá-la. Senti medo da velhice. De ser dependente e vulnerável. Não sabia dessas palavras, mas hoje me lembro muito bem desse sentimento. Minha única e simples ideia que tive para amenizar os sentimentos de minha avó, naquele momento, foi chegar até onde ela estava sentada e chorando. Ajoelhei e encostei minha cabeça no colo dela. Senti suas mãos acariciando minha cabeça. E começamos a conversar, em telepatia. No fundo, queríamos ter um inverno ensolarado, com muitas flores coloridas, colhendo o frescor dos frutos perfumados e saborosos.


Maria Rosário Orquiza é jornalista, servidora pública (atuando como assessora de comunicação em instituição federal de pesquisa) no Vale do Paraíba (SP). É docente aposentada pela UFMT. Paulistana de nascimento, cresceu na região metalúrgica paulista do ABC, foi professora em Goiás e MT, somando 32 anos no Centro-Oeste. Escreve sobre a leitura que tem de suas vivências e a dos outros, usando, como ferramenta, a criação do universo infinito de pessoas e lugares. Participa do Curso Online de Formação de Escritores

 

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